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segunda-feira, 4 de junho de 2012

Palco do mundo.

JORNAL ESTADO DE MINAS
Publicação: 02/06/2012
caderno PENSAR
Palco do mundoCuradores da 11ª edição do Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte destacam os princípios estéticos e políticos que nortearam a escolha dos espetáculos que serão apresentados na cidade este mês

Grace Passô, Marcelo Bones e Yara de Novaes

O verbo “curar” e o substantivo “curadoria” envolvem cuidados. No exercício dessa função compartilhada, fizemos as vezes de funâmbulos no arame: entre a responsabilidade atávica da cultura na administração pública e o risco que a arte reivindica de todos que lhe pedem passagem.

Nosso passaporte são as artes cênicas. Entre as questões que movem os sentidos da curadoria nesta 11ª edição do Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte, o FIT-BH, está o conceito de teatralidade e seus deslocamentos.

Citamos o exemplo da dramaturgia expandida para além da literatura dramática, escrita também por meio do corpo, do espaço cênico, da alteridade plantada na paisagem da praça. A interface com outros campos artísticos, como o cinema, o vídeo, a dança e as artes visuais, multiplica ainda mais essas possibilidades de “textos” para o espectador imerso nos fragmentos do cotidiano digital. Se antes a vida estava por um fio, hoje ela está por um frame na reinação das telinhas.

Um festival que abarca tamanha diversidade de linguagens e culturas pode induzir a uma programação liquefeita. Nossa percepção é contrária: acolhemos criadores obcecados pela síntese, pela depuração daquilo que lhes torna específico, particular, difícil de ser nomeado, classificado. É como se cada um portasse uma cosmogonia, um oceano. Todos estão por inteiro. Cada um manifesta o seu desejo de teatro.

No verbete “teatralidade”, do dicionário organizado pelo pesquisador francês Jean-Pierre Sarrazac, recém-lançado no Brasil, lemos que “a teatralidade, considerada síntese alquímica, gera por fim um desaparecimento do texto sob seu potencial universalista, pois recorre a outras sensações; o potencial substitui o real, o devir o ser, o virtual o atual. A interpretação atenua a irredutibilidade da coisa interpretada”.

Há alguns códigos de cena que, em princípio, não são reconhecíveis como teatro, mas constituem o teatro que essa equipe criadora assim deseja, ampliando a potência dessa arte. Às vezes, a falta de teatro para alguns pode significar justamente a potência de teatro para outros, por mais paradoxal que pareça.

Quando se ouve que “isso não é teatro”, pode estar aí toda a potencialidade desse teatro do avesso. Supomos e raciocinamos que teatro é o que cada um deseja que ele seja, pois é teatral o que quer e pode ser teatro. Inclusive quando ele é subtraído, não está lá segundo as convenções reconhecíveis.

Na leva dos trabalhos limiares no FIT, de fronteiras diluídas, podemos listar as produções Oxlajuj B’Aqtun (Guatemala); Quiet (Israel); Lisboa (Itália); Viajantes móveis e Transfiguration (França), Theatre (República Tcheca), Translunar paradise (Inglaterra), Bença (Bahia), Depois do filme e Estamira (Rio de Janeiro), O idiota e Ópera dos vivos (São Paulo); Ressonâncias e Dressur + Play again (Minas Gerais).

Outra variante em termos de conteúdo e forma é o acercamento das realidades social e política. O desafio de transpô-las para a cena conforme o relato documental da história recente de um país ou o testemunho de um cidadão sobre a violência inscrita na memória de sua pele.

As realidades políticas submetidas ao teatro expõem uma vontade de presentificação do passado. A história não surge como pano de fundo, mas enquanto unidade global, com direito a fissuras, sem delimitar um episódio desse ou daquele período. A história é submetida ao crivo do teatro, ao recorte dos artistas.

Elencamos dramaturgias que tangenciam um político, um governo autoritário, mas o protagonista é sempre o teatro, a organização desse material levantado. Algumas obras abordam indiretamente fatos históricos prementes, como os movimentos por independência na chamada Primavera Árabe ou períodos dolentes como as ditaduras militares chilena e brasileira. Mas a geopolítica, mais uma vez, desponta submetida ao que é singular para determinado agrupamento teatral.

Circunscrevem essa linha de atuação espetáculos como El último ensayo e Sin título – Técnica mixta (Peru); Golgota picnic (Espanha); Ópera dos vivos (São Paulo) e Naquele bairro encantado (Minas Gerais).

Às vezes, as perspectivas social e política atravessam dilaceradamente o indivíduo, a célula de uma sociedade, como em El autor intelectual e Los autores materiales (Colômbia), às voltas com os conflitos internos daquele país.

Dramaturgia do espectador
Interessa-nos essa troca de lugar, a inversão de expectativas quando o próprio espectador é colocado na condição de “ator”, às vezes cúmplice na imersão narrativa sem que os artistas interajam efetivamente – a inclusão se dá pela composição espacial, a proximidade que catapulta para o interior de uma sala de estar, de uma cozinha ou de um vagão de um trem.

O espectador não é somente aquele que vai “completar” o espetáculo, mas torna-se de fato um elemento dramatúrgico, um “coautor” mais a fundo.

A relação com os espaços públicos é cara à história do FIT-BH. Compreendemos sua territorialidade para além das praças e parques. Pautamos, por exemplo, o auditório da antiga Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), hoje ocupado pela Secretaria Municipal de Educação. O edifício que foi palco de um dos episódios de resistência política à ditadura militar por estudantes, professores e funcionários universitários vai abrigar Villa+Discurso. A montagem do Chile sonda o passado repressor evocando criticamente sua ex-presidente, Michelle Bachelet. Ela foi presa, teve o pai assassinado sob o regime do general Augusto Pinochet, mas seu governo resultou bastante pragmático quanto a esses rastos.

Instiga-nos relativizar o que habitualmente é estabelecido como o lugar do teatro na cidade. A descentralização por comunidades de Belo Horizonte agenda apresentações no Centro Cultural Padre Eustáquio, da Fundação Municipal de Cultura, e em equipamentos da Região do Barreiro, como o Parque das Águas e o Centro Esportivo Milionários. Entre as demais obras que ressignificam o espaço ao ar livre, estão Domínio público (Espanha), Time out (Alemanha) e Por que a gente não é assim? Ou por que a gente é assado? (Ceará).

Pela primeira vez uma edição do FIT contempla uma estreia nacional. Belo Horizonte assistirá em primeira mão ao novo espetáculo protagonizado pelo ator paraense Cacá Carvalho, Um, nenhum e cem mil, desfecho da trilogia em torno da obra do escritor italiano Luigi Pirandello, sob direção de Roberto Bacci. Este italiano também integra a programação com o seu coletivo da Fondazione Pontedera Teatro. Ele desdobrando uma homenagem ao poeta Fernando Pessoa, adaptando seu O livro do desassossego para o palco, em Abito, e celebrando seus heterônimos no espetáculo de rua Lisboa, com atores cantando, declamando poemas ou pedalando em bicicletas.

O teatro de grupo é outro segmento prestigiado neste evento, como dão conta edições memoráveis do FIT. O Grupo Galpão reestreia aqui a remontagem do seu maior sucesso, a obra-prima Romeu e Julieta, que depois levará a Londres e percorrerá outros estados. Sua produção mais recente, Eclipse, também foi escalada para comemorar os 30 anos do coletivo. Como ele, o Yuyachkani, do Peru, que também vem com dois trabalhos, já soma 41 anos de história. Do Rio Grande do Norte, o Clowns de Shakespeare atravessa os 18 anos com Sua incelência, Ricardo III, sob direção de Gabriel Villela, o mesmo do mineiro Romeu e Julieta. A Companhia do Latão se aproxima dos 15 com Ópera dos vivos. Enquanto a mundana companhia, grafada assim em minúsculas, vai a Dostoiévski, O idiota, catalisando atores de núcleos expressivos da cena paulista, como Oficina, Vertigem e Companhia Livre. Isso reflete que a concepção de grupo fixo tem mudado. As pessoas estão se vinculando também a trabalhos cooperativados, suscetíveis a intercâmbios, a estados moventes.

Dentro desse teatro contemporâneo, há, e continua havendo, espetáculos que têm suas raízes na tradição do teatro popular, cuja formação da roda é fundamental.

Nessa ágora, o artista não tem frente ou verso, esquerda ou direita. É a partir dessa visão do todo que ele está desafiado a conquistar a atenção do público. Como situa a crítica Mariangela Alves de Lima, nesse tipo de manifestação “o público é detentor de uma rica herança e é possível reativar esse imaginário. Este teatro não quer ser revelação, mas, antes, confirmar e exaltar a riqueza e a legitimidade da cultura do público”. São linguagens herdeiras das mais diversas estéticas teatrais, e elas estarão representadas por espetáculos de rua e de palco influenciados pela Commedia dell’Arte, seus arquétipos populares universais, além da tradição do picadeiro.

Nessa esteira, estão presentes A farsa do advogado Pathelin (Presidente Prudente-SP), Miséria, servidor de dois estancieiros (Porto Alegre) e Mistero buffo (São Paulo).

Como certa vez expuseram com muita felicidade os italianos Fabrizio Cruciani e Clelia Falletti, ao discorreram sobre o coletivo americano The Living Theatre, o fundamental é operar “atos rituais ou simbólicos com verdade”, não importa o lugar. Eis a tarefa que acreditamos caber às mulheres e aos homens das artes cênicas.

Nossos sinceros desejos de boa viagem a todos os espectadores e criadores.

FIT
O Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte, FIT-BH, será realizado de 9 a 24 deste mês. Informações e programação completa: www.fitbh.com.br. Este artigo integra a publicação Revista FIT, que será lançada no dia 18.


. Grace Passô é atriz, dramaturga, diretora e cofundadora do Grupo Epanca!
. Yara de Novaes é atriz, diretora e professora de teatro, cofundadora do Grupo 3 de Teatro.
. Marcelo Bones é diretor e professor de teatro, confundador do Grupo Teatro Andante.
Os três assinam a curadoria da 11ª edição do Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte (FIT-BH).
Acompanhe também pelo Blog: www.debatecenico.blogspot.com

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